sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Zé do povo e o presidente

Tony Pent


Nesse dia o Zé do povo estava contente quando voltou para a favela.
Também pudera! Ali aonde ele havia comprado alguns palmos de terreno e levantado a custo, uma pequena casinha de três cômodos, hoje por fim aquilo tudo era seu.
Fazendo o maior dos estardalhaços ele entrou no barraco trazendo em uma das mãos uma garrafa de vinho para comemorar com a “Nega” a posse definitiva do barraco e na outra, uma carta que lhe dava os plenos direitos sobre a propriedade. O papel com que ele se abanava havia até um selo para dar mais confiabilidade ao documento.
Depois de abraçar a Nega e os filhos ele foi até a porta do barraco e vendo a muitas casinhas iguais a sua ele imaginou as loucuras que fizera juntamente com esposa e os pequenos filhos naquela construção. Serviu ele por seis meses de pedreiro, amassando e carregando o barro, quebrando tijolos e laboriosamente foi levantando as paredes. Quando tudo estava pronto, ele trouxe os trens que estava na casa alugada e passou a morar naquilo que no futuro seria seu. Hoje era um grande dia, pois ele havia acabado de pagar a ultima prestação do terreno.
Quando ele ali chegou - comentava o Zé com a esposa e enchendo de orgulho e respeito os olhinhos daquelas crianças que via no pai toda a esperança de que estavam protegidas -, o que era só terreno prosperou de um dia para o outro, ganhando forças e enchendo-se de gente. Em pouco tempo àquela laboriosa gente humilde da favela já tinha construído com o suor dos rostos quase trezentas casinhas iguais a dele. A maior felicidade de todos os moradores daquele lugar era o de ter um endereço fixo e de ter um lugar para onde pudesse voltar quando a noite chegasse. No burburinho da vizinhança o bonito era quando chegava às cinco horas da manhã e a favela acordava com os seus moradores abrindo as infinitas janelas e as portas alinhadas para dar um bom dia para a manhã que nascia dando a cada morador um motivo de orgulho e de esperança. O barulho dos bocejos que vinham dos barracos e o cheiro quente do café que corria a vizinhanças era a melodia que o Zé trazia guardada nas lembranças. Nesse confuso rumor das manhãs, os choros das crianças se misturavam ao cacarejar das galinhas, dando ao Zé a sonora vida feliz dos simples moradores.
A neblina se formando por cima do rio que corria a céu aberto, assim que as torneiras de cada casa eram abertas, o vapor aumentava, para depois se dissolver de encontro com a luz tenra da aurora, mostrando aos moradores que se iniciava mais um dia e que Deus os chamava para o trabalho.
As roupas dependuradas que ficavam na véspera nos varais seguiam com os seus proprietários para mais um dia de labuta.
Tudo isso eram lembranças que o Zé guardava do dia a dia. Mas aquela tarde era especial Tanta era a alegria do Zé, que mesmo sendo um péssimo cantor, ele cantarolou uma canção dentro do barraco e apresentou a todos os seus familiares, o papel da posse definitiva.
- Esse chão é nosso, minha Nega! – dizia ele quase chorando.
A “Nega” depois de ouvi-lo, desgrudou a criança que trazia agarrada na teta e lascou-lhe um demorado beijo de agradecimento,
Mais que depressa a pequena mesa escorada por dois caixotes e coberta com uma toalha de chita, serviu de palco para dois copos de requeijão que ela correu para buscar na pia e o Zé com toda cerimônia os encheram de vinho. Na suprema felicidade pela qual passava a família o Zé levantou o seu copo em um brinde demorado aquele momento e depois de dar um longo gole, virou-se como fazia sempre e brindou ao presidente Lula, que em uma de suas fotos de campanha fora parar na casa do Zé e que servia agora para dividir um dos cômodos.
- Obrigado conterrâneo!- dizia o Zé para a fotografia do presidente tanto nas horas boas como nas ruins.
Com o restinho que sobrou de vinho na garrafa o Zé colocou um pouquinho água e açúcar e fez uma “bega” para as crianças beberem como se fosse um suco.
As seqüências das lembranças esquecidas no meandro do passado do Zé o álcool do vinho o fizera se apresentar agora mais nítidas. Zé passou a compreender que estava sendo um bom pai, dando aos filhos e a esposa aquilo que nunca tivera. Até aquele dia ele sabia que pagaria a submissão com a honra e o bem até com a própria vida se preciso fosse. Mas em tudo isso ele via a sua recompensa nos sorrisos de cada filho. Outra felicidade era numero de crianças que acompanhava a casa e ele tinha um bom motivo para dividi-la em cômodos do tamanho de um caixa de geladeira e fazer dos quais, o ninho para a sua prole, que com a regularidade de um gado procriador, não deixava de nascer uma cria por ano.
Há seis anos atrás tudo havia começado e da barriga da amorosa Nega já havia saltado cinco bacuris.
Na embriagues das ilusões daquela noite o amor caiu e mansamente a favela adormeceu. O Zé ainda com os olhos pregados na folha de zinco e ora na figura sorridente do presidente ele foi deixando que o torpor tomasse conta de seus olhos e quando veio o silêncio ele murmurou baixinho.
- Obrigado conterrâneo!
A manhã que se apresentou no outro dia não se parecia em nada com as outras, coisa que nem mesmo o galo cantou na madrugada. O sol já ia raiando e como de costume, as portas iam se abrindo e quando o cheiro de café ia percorrer a vizinhança, um barulho ensurdecedor rompeu no pé da favela. Um baque de cacete batendo no escudo soou coordenado. Os sons das botas das milícias zunindo de encontro às pedras do chão, pareciam que os barracos se acendiam de terror. Gente corria. Gente se escondia. Um berraria infernal dava vida a um formigueiro em guerra, que se arrastava por tudo que se encontrava pelos caminhos. Das janelas, os gritos e os choros se misturavam às bombas de efeito-moral e as balas de borracha.
Tudo não passava de uma reintegração de posse, ordenada pelo juiz e que se seguia num nobre papel, acompanhado pelo oficial de justiça.
Assim que o homem a mando da autoridade leu às seis horas da manhã, sem nenhum morador como testemunha ocular dos fatos, a milícia se pôs a subiu armada e logo em seguida, o trator veio derrubando tudo que encontrava pela frente.
A primeira mulher que viu seu barraco ser destruído partiu de murros contínuos, desgrenhada, ofegante, cabelo embaraçado sobre a cara, gritava como que alucinada, com a boca escorrendo sangue.
As palavras de baixo calão cruzavam de todos os pontos e os homens seminus corriam atirando pedras e tudo que encontravam pela frente.
Os entremeios dos barracos se enchiam de povo e mais povo. A milícia mesmo a contra gosto não dava trégua.
Móveis eram atirados e incendiados no meio da rua para formar uma barricada, na loucura de impedir o avanço da tropa. Nada era barreira para a voz da ordem e do direito.

O Zé não pensou em nada a não ser na família. Sem compreender o que vinha pela frente, tratou de dar guarida aos pequenos e a mulher. Mas ao se sentir impotente para combater o demônio que serpenteava pelas ruas da favela, ele pediu que ela corresse e levasse as crianças consigo.
Agarrando-se a escritura de posse ele correu para frente da sua casa e tentou proteger aquilo que ele achava por direitos, ser a sua propriedade inviolável.
A voz embargada do Zé com pedido de compreensão foi abafada diante do poder. Uma saraivada de cacetadas foi à resposta que lhe explodiu de encontro ao seu corpo.
Com a embriagues de quem se vê por perdido, logo percebeu que fora enganado e que seus documentos não passava da mais sórdida mentira e que até mesmo a sua vida não passava de um embuste.
Sua primeira saída foi a de fugir, mas ao olhar em torno de si, percebeu que era tarde demais para ser respeitado pelos filhos. Olhando aterrado para policia, o Zé arrancou uma “peixeira” que usava para subir o morro e de um só golpe certeiro rasgou o próprio ventre de lado a lado. Cambaleando dois passos caiu moribundo em uma poça de sangue.
Enquanto nos olhos dele era refletido o escombro a que se transformara o seu barraco, a fotografia sorridente do presidente, ainda presa a um pedaço parede do quarto lhe deu a ultima visão.
- Você não tem culpa companheiro! – fechou os olhos.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O colchão
Tony Pent
Era madrugada e de repente ele foi acordado sem motivo algum. Por mais que ele tentasse recordar de algum sonho ou de algum pesadelo que pudesse colocá-lo naquele estado de apreensão, nada lhe vieram às lembranças. Alguma coisa lhe mostrava de maneira palpável, que ele se encontrava já algum tempo a sós.
- Depois que se fica velho – pensou consigo-, ninguém se preocupa com o que você possa pensar. A sua vida se torna dividida entre o desejo e coerência, porque quando se está sozinho consigo mesmo, esses dois sentimentos são os que mais se distingui de lamentável na solidão.
Como sempre, mais esta noite ele estava só e a esposa no quarto contíguo ao dele era a única pessoa do mundo que se achava em comunhão com ele. Apesar da pouca distância que os separava, os pensamentos deles eram longínquos e isso era um bom motivo para que dois não deixassem de ser amigos ou cúmplices, mesmo quando essas cumplicidades fossem efêmeras, contudo, relativamente agradáveis.
Diante da escuridão do pequeno quarto, ele sentiu que as suas faces estavam roxas de frio e, um calafrio lhe arrepiou ainda mais a pele, como se uma violenta necessidade de sentir contra a sua carne o contato de uma outra carne, justificasse o seu desejo naquela solidão.
- A quem eu devo procurar, então? A você minha adorada e eterna esposa! – disse para si mesmo
Não pensando em mais nada, todo o seu ser palpitou de numa grande expectativa. Ele teve medo, mas seu coração havia se inundado de esperança. No entanto, assim que abrir a porta do quarto dela, tudo lhe pareceu que ele caminhava para o encontro de uma desconhecida. Os seus passos pareciam que eram amortecidos pelo medo de acordá-la. Quando ele parou ao lado da cama nos sentido contrário ao que ela dormia, ele sentiu como há muito tempo que aquele fora o seu lugar de honra. Mas, antes que ele tomasse o seu lugar de direito, a voz doce e melodiosa da esposa dele ecoou dentro da noite.
- Você tinha que me acordar!
Quisera ele ter-lhe respondido: “estava com saudades”. Mas não pode. Podia-se dizer que era impossível ele articular qualquer frase diante da sua decepção.
Para falar a verdade, ele se sentiu cansado e envergonhado. Depois ele tentou dar um sorriso meio sem jeito e como um filho que se envergonha de medo e procura a cama dos pais ele foi se ajeitando e ao colocar a almofada sob a cabeça quis sorrir duas ou três vezes, com ar misterioso e em instante depois tentou adormecer. O leve torpor da escuridão o levou para alguns anos atrás, quando ele se deitava sobre o seu colchão modelo “King Size” e se esparramava ao sabor do calor do corpo daquela que agora fingia dormir. Vários anos seus sonhos e seus desejos formam embalados por aquele objeto de descanso. Tal era o apego do colchão para com o casal, que as suas molas se amoldaram aos corpos deles, como os braços de uma mãe a acariciar seus filhos durante o sono.
Naquele tempo, ele inventava as maiores loucuras para agradá-la e era até capaz de se antecipar aos maiores desejos dela e tudo para mostrar a ela o quanto ele a amava. Na verdade ele sempre foi o mesmo e se por instante no começo do casamento, houvera incompreensão, isso acontecia sempre por culpa dela. Comparando-se ao amor que ela lhe dedicara, o dele lhe parecia artificial e egoísta.
Às vezes ela até achava maravilhoso ser amada, acariciada e desejada como era, mas, no entanto, por alguns momentos ela experimentava de repente, uma espécie de repulsa por ele, a qual se podia bem ver que: no fundo de si mesma ela não tinha o amor dele como o seu amor integral.
Para provar isso, ele corria desenfreadamente atrás desse meu único alvo: a mulher que representava para ele toda sua felicidade. Certamente ele queria fazê-la feliz, mesmo que nessa união ele tivesse de ser infeliz. A principio ele sempre soubera que a vida deles se transformaria no que se transformou; pois no fundo, o amor dele também se tornou egoísta. A resistência da mulher dele era a prova disso e, que ele jamais fora o homem a quem ela deveria se casar.
Na verdade, ele tinha muita fé no futuro e esperava que realmente as relações delas se tornassem mais ternas, mais generosas e que a compreensão dela lançasse uma ponte por cima daquele abismo, que nada parecia a ele que um dia se fecharia.
Agora como estava horrorizado dentro daquele quarto, ele não podia evitar que vagas fantasias acompanhadas de uma tristeza sensual viessem assediar o seu espírito, mostrando aquele leito, como se fosse o seu leito de morte. Aliados a esses pensamentos mórbidos, ele podia compreender que a alma dele sempre esteve nas duras mãos dela, e que jamais ele mentiria se dissesse que não desejaria se casar com ela ou que talvez teria sido melhor para ele e para ela que dois não tivesse esse fim.
Tudo lhe parecia ridículo em dizer, que ele ainda desejava para ela a maior felicidade do mundo, onde ela dizia que: ele próprio desgastou, não ignorava, os melhores anos da vida dela.
Hoje, na velhice, a doença dela se agravou e o seu processo alérgico tomou novos rumos e a culpa de tudo foi de um simples colchão que os afastou, quando na verdade o que os afastou para sempre, foram os verdadeiros e bons momentos que eles nunca mais tivemos.
Para tanto foi preciso que o velho colchão fosse lançado ao fogo, com todas as lembranças de desejos e de carinhos que os dois tiveram ao longo da vida. Por um novo colchão a vida também foi substituída.
Os fungos e os ácaros que habitavam o velho colchão os rodeavam aos milhões e bilhões de sonhos formavam com eles uma vida, simples, mas unida, ao passo que este novo colchão se tornou tão estreito e apertado que foi necessário que um nós dois se abdicasse da companhia do outro.
Tudo foi um mero acaso, que a vida por si só achou por bem traçar para eles um novo rumo.
Esse encontro com a saudade que ele teve ao invadir o quarto dela lhe dera uns bons minutos, para que ele pudesse refletir sobre a forma piedosa com que ela tinha de tratá-lo toda as vezes em que os dois se encontrassem .
Na verdade, a situação de outrora fora dramática, teatral como a de agora, só que sem a feição dos desejos, o quê muito a lisonjeia, principalmente ao chamar com impaciência para a felicidade, este, que agora se levanta para rumar para o seu pequeno quarto solitário. Este, cujo coração transborda de amor e desejo por uma mulher que nada lhe concebeu para o bem, bem como para o mal e que ele ainda lhe dá o direito de continuar exclusiva.
Já de volta para o seu leito, ele acendeu a luz, encostou a cabeça no travesseiro e ficou a olhar a fotografia dela em cima de sua mesa. Uma magoa incontida se rompeu em pranto. O peito dele se encheu de dores e quando mais ele pensava que a tristeza havia acabado mais lágrimas lhe transbordavam dos olhos. Um soluço acompanhado de mais outro, um suspiro logo em seguida, um profundo e tudo cessaram. As mãos dele descansaram ao peito e a imagem da fotografia dela foi lentamente se apagando nos olhos dele...